O bocal do aspirador de pó risca o
carpete azul por onde pisam, ou deveriam pisar, 81 pares de sapatos lustrosos
de segunda à sexta-feira. No Senado Federal, onde os servidores efetivos não
ganham menos que R$ 4,8 mil, é um funcionário terceirizado, da área de limpeza,
que desenha - há 17 anos, de graça - a bandeira do Brasil que já virou emblema
do plenário. Mas além do tom monocromático que difere totalmente do colorido
original, o símbolo nacional delineado por Clodoaldo Silva, de 45 anos, não tem
ordem, muito menos progresso. "Só volto a escrever isso quando o Brasil
merecer", diz.
O lema da bandeira brasileira até
constava nas primeiras obras de Silva, filho de piauienses, nascido em
Brasília. Desenhou a bandeira pela primeira vez em 8 de abril de 1998, a mais
inesquecível das quartas-feiras: a Copa do Mundo se avizinhava, o clima ufanista
reinava e seu filho Marcos Vinícius nascia. Tudo parecia em plena ordem e
progresso. "Hoje, infelizmente, já não é mais assim", lamenta ele,
que aboliu as inscrições positivistas quando o caso do mensalão começou a ser
revelado, dez anos atrás.
Clodoaldo, que só conhecia o vaivém
dos políticos e as discussões acaloradas pela televisão, chegou ao Senado como
auxiliar de serviços gerais, no último dia do ano de 1997. Impressionou-se com
a grandiosidade dos salões, com o luxo dos objetos, com a sisudez que o poder
imprime nos semblantes de quem dele goza. A primeira vez que aspirou o tapete
azul e viu que a limpeza deixava marcas, brilhou uma ideia: fazer arte, sem
medo de represálias. Apostou num desenho abstrato, que não foi lá muito aceito
pelos nobres senadores. Era descontraído demais para a seriedade do lugar.
"Parecia um circo", reconhece ele. "Pensando bem, até
combinava."
Mas quando um filho chega ao mundo,
amadurece o pai - e, nesse caso, também o artista. Clodoaldo queria manter
aquele hábito, sem causar furor, e homenagear seu bebê. Buscava, agora, um
desenho do qual ninguém reclamasse. "Quem é que vai ser contra uma
bandeira?", pensou. Dito e feito: logo depois, chegou aos seus ouvidos o
burburinho de que os parlamentares estavam gostando.
Tanto era verdade que a história do
funcionário, desde 2004 promovido a encarregado de serviços gerais, é, desde
então, pauta certeira das visitas guiadas ao Congresso Nacional. No último fim
de semana, houve quem perguntasse se a bandeira de 2m x 1m não era, na verdade,
uma pintura permanente no carpete. A negativa abismou em dose tripla os
turistas: são também dele os desenhos da Catedral de Brasília, à esquerda do
plenário, e do próprio Congresso, à direita - jogos de luzes e sombras dos
quais Niemeyer poderia ficar orgulhoso.
"Me sinto satisfeito quando
falam de mim durante os passeios, mas às vezes escapam umas bobagens. Dizem que
eu sou funcionário do Senado - eu não sou -, que eu tenho três filhos - eu só
tenho um -, que eu vou me aposentar e continuar vindo só para desenhar - claro
que não -, até que eu morri", conta, sem precisar explicar o último ponto.
Falam a verdade, porém, quando dizem
que Clodoaldo é um artista anônimo. Sem formação profissional em artes, sua
escola foi meia dúzia de canetas e um calhamaço de papel em branco, onde
desenhava carrinhos e paisagens quando era criança. No Senado, rebuscou a
técnica. Descobriu que, ao escovar o carpete para cima, o azulão fica mais
claro; para baixo, mais escuro. Assim, aprendeu perspectiva, sem nem saber
direito o que isso significa. O segredo é, basicamente, colocar um amigo na
galeria para observar o processo de cima e sinalizar se o desenho está bem
centralizado.
O retoque é feito, em geral, de 15 em
15 dias. Mas se há sessões tumultuadas, em que os senadores se empolgam e
acabam, sem querer, pisando na bandeira, é preciso uma intervenção de
emergência. Ainda mais agora, depois de setembro, quando o carpete antigo foi
substituído por um novo, em que os desenhos se apagam mais facilmente. Se
dependesse de Clodoaldo, permaneceria o antigo. "O alto relevo deixava
tudo mais nítido", explica. Mas imperou a vontade dos senadores, que se
queixavam de problemas respiratórios causados pela poeira e pelos ácaros. Ao
funcionário, só coube resignar-se.
Silencioso
O site do Senado Federal reconhece
que o trabalho artístico é belo e original, "causando forte impacto de
admiração em todo o público que por ali passa". Chegam a classificá-lo
como "um discurso silencioso na pauta da beleza e da originalidade".
Mas não cita que silencioso mesmo é o seu autor. Discreto, Clodoaldo, mesmo que
esteja aqui e acolá coordenando a equipe de faxineiros, é figura praticamente
invisível por entre os corredores do Legislativo.
"O Cássio Cunha Lima (PSDB-PB)
me dá boa tarde e o Suplicy (Eduardo Suplicy, ex-senador pelo PT-SP) falava
muito comigo. O resto é tudo agoniado, apressado", relata. Uma vez,
flagrou o ex-senador Antônio Carlos Magalhães (DEM-BA) parado em frente à sua
obra, contemplando-a, pensativo, em um raro cenário de plenário vazio. Poucas
semanas depois, o político baiano morreria. "Foi um gesto bonito,
aquele", lembra. Comovido, saiu de fininho, sem falar nada.
O desenhista evita falar sobre o
atual momento político do país. "O povo se ilude muito fácil. Só posso
dizer que espero que o Brasil dê certo". Até lá, promete ele, ordem e
progresso não saem do seu aspirador.
As informações são do jornal
"O Estado de S. Paulo".
(UOL Notícias)
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