Medo é a primeira palavra usada pelos jovens
infratores para definir a experiência com os sistemas Judiciário e
socioeducativo. “Tenho medo, como o medo que estou agora”, revelou Anderson*,
de 16 anos, sobre o que sentia em relação à possibilidade de redução da
maioridade penal, de 18 para 16 anos, em discussão no Congresso.
Era a segunda
vez que o tráfico de drogas o levava a passar por um processo nas varas
especiais da Infância e Juventude da cidade de São Paulo. O fórum, que em 2014
julgou 13,4 mil processos de atos infracionais, é considerado o maior do gênero
na América Latina.
Acompanhado da mãe, o jovem temia não só as
possíveis repercussões da discussão na Câmara dos Deputados, mas também a
decisão do juiz que seria anunciada em breve.
Ele aguardava a audiência em uma fila na porta
da 4ª Vara de Infância e Juventude. O prédio, construído em 1910, fica no
bairro do Brás, zona leste paulistana. As salas são montadas com divisórias de
escritório e os corredores são estreitos para o grande fluxo de pessoas. Sem
bancos ou cadeiras, os adolescentes e as famílias aguardam as audiências em pé.
“Veja esse fórum, onde nós tratamos da geração
futura, que são os infratores. Um prédio caindo aos pedaços que já devia ter
sido restaurado, reformado, estruturado”, reclama o juiz titular da 4ª Vara e
coordenador do fórum, Raul Khairallah de Oliveira e Silva.
A estrutura física das varas reflete, na
opinião de Khairallah, a falta de prioridades do Poder Público no tratamento do
jovem infrator. “Vai lá no Fórum Criminal na Barra Funda, veja a estrutura que
eles têm. Parece uma cidade. Um monte de policiais para fazer escolta e tudo
mais. Ali você está lidando com criminosos que você dificilmente vai ter como
ressocializar”, compara o magistrado que também foi juiz criminal. “Enquanto
você está na fase de desenvolvimento, a chance de você poder fazer alguma coisa
para a ressocialização é infinitamente maior”, enfatiza.
Sempre com o olhar baixo e as mãos para trás,
ainda que não estivesse algemado, Anderson relatou que a segunda apreensão
estava relacionada à anterior. “Eu tinha que pagar as drogas que eu perdi na
primeira [apreensão]”, contou o jovem que foi pego novamente vendendo cocaína.
Pelo flagrante, o adolescente estava há um mês
e seis dias internado provisoriamente, como ele mesmo informou com precisão.
Sobre a passagem pela Fundação Casa, Anderson tinha críticas. “Tudo errado”,
resumiu levantando o rosto pela primeira vez durante a entrevista. “O jeito que
nos tratam lá, agredindo e batendo”, detalhou.
“Em muitas
unidades, em vários locais do país, inclusive São Paulo, existem inúmeras
denúncias de maus-tratos, tortura e ociosidade. Mas são casos mais pontuais,
enquanto o problema é mais generalizado quando nós tratamos do sistema
penitenciário”
Apesar dos problemas, o advogado e membro do
Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo Ariel
de Castro Alves acredita que o sistema socioeducativo ainda possibilita maiores
chances de recuperação para os infratores do que as penitenciárias. “Em muitas
unidades, em vários locais do país, inclusive São Paulo, existem inúmeras
denúncias de maus-tratos, tortura e ociosidade. Mas são casos mais pontuais,
enquanto o problema é mais generalizado quando nós tratamos do sistema
penitenciário”, avaliou.
“Se ocorresse um aprimoramento para cumprir
corretamente o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei das Medidas
Socioeducativas de 2009, certamente nós teríamos muito mais resultados no
sentido de reduzir ainda mais a reincidência”, acrescenta Ariel.
Opinião que coincide com a do vice-presidente
do Movimento do Ministério Público Democrático, Tiago Rodrigues. “Se nós não
utilizamos todas as ferramentas, todos os recursos que a lei já nos dispõe, de
que adianta ampliar isso?”, questiona o promotor que atua na área da Infância e
Juventude da capital paulista sobre a proposta de reduzir a maioridade penal.
Entre as medidas que Rodrigues considera
subutilizadas está a semiliberdade, quando o jovem trabalha e estuda durante o
dia, retornando para a unidade de internação para dormir. “De modo que o
assistente social, o psicólogo e toda a equipe técnica envolvida no processo de
reeducação possa observar um comportamento muito mais natural desse adolescente
e verificar, com precisão, se ele está preparado para voltar ao convívio
comunitário.”
Segundo um levantamento feito com os 3,36 mil
casos que passaram pela promotoria da Infância e Juventude entre agosto de 2014
e março de 2015, apenas 271 adolescentes, dos 1.232 que passaram por internação
no período, progrediram para a semiliberdade. “Os demais foram direto da
internação para o meio aberto”, destacou.
O Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) prevê seis medidas socioeducativas que podem ser
aplicadas a adolescentes a partir dos 12 anos: advertência, obrigação de
reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida,
semiliberdade e internação.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
prevê seis medidas socioeducativas que podem ser aplicadas a adolescentes a
partir dos 12 anos: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de
serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. A
medida é aplicada de acordo com a capacidade de cumpri-la, as circunstâncias do
fato e a gravidade da infração.
Após um mês de internação provisória, o
adolescente Gustavo* passou a cumprir liberdade assistida. Sobre o período na
Fundação Casa, o jovem, hoje com 17 anos, lembra da relação difícil com os
funcionários da instituição. “Eles não passam confiança. Passam medo”, lembra.
“Se você não faz o que eles mandam, eles dão tapa na cabeça. Dão chutes”,
conta.
O receio também vinha das incertezas do jovem
sobre os desdobramentos do processo por roubo. “Eu não sabia se ia ficar
fichado. Não sabia o que ia acontecer. Eu tinha esse medo de não poder arrumar
emprego, não poder ter cargo público”, acrescenta.
Hoje, Gustavo avalia que a experiência acabou
tendo pontos positivos, principalmente a participação em atividades culturais e
rodas de conversa – que faziam parte das medidas socioeducativas cumpridas no
período de liberdade assistida no Centro de Defesa dos Direitos da Criança e
Adolescente (Cedeca) em Sapopemba, zona leste paulistana.
Segundo ele, essas atividades acabaram
despertando o seu interesse pela política e pelo funcionamento institucional do
país. “Tem uma parte da sociedade que tem todos os seus direitos. Já tem uma
que tem os seus direitos negados. Principalmente os adolescentes que estão
dentro da fundação, esses não têm direito nenhum. Mal sabem dos seus direitos”,
analisa o jovem que, além de estudar para concursos públicos, pretende cursar
dois cursos universitários: psicologia e ciências sociais. “A Fuvest
[vestibular da Universidade de São Paulo] não é um bicho de sete cabeças”,
conclui otimista.
Sobre as denúncias de supostos desrespeitos
aos jovens, a Fundação Casa, por meio de sua assessoria, disse que leva em
consideração os direitos humanos dos adolescentes e não tolera qualquer tipo de
prática de violência nos centros socioeducativos. “A instituição pauta seu
atendimento pelas diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), com respeito à
integridade física e psicológica dos jovens”, disse em nota.
A instituição destacou ainda que aplica sanções
administrativas, por meio da corredegoria-geral, aos funcionários que
participam de episódios identificados de violência. Essas medidas podem ir de
suspensão à demissão por justa causa.
SAIBA MAIS:
Criado em 02/05/15 15h30 e atualizado em 02/05/15 17h52
Por Daniel Mello Edição: / Lílian Beraldo
Fonte: Agência Brasil
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